domingo, 29 de julho de 2012

Só pro 2º C


D. FLOR E SEUS DOIS MARIDOS     -       VELÓRIO DE VADINHO
     Era domingo de carnaval, quem não tinha naquela noite corso de automóveis a fazer, festa  onde divertir-se, programa para a madrugada? Pois bem: com tudo isso, o velório de Vadinho foi       um sucesso. "Um autêntico sucesso", como orgulhosamente constatou e proclamou Dona  Norma.
     Os homens do rabecão largaram o corpo em cima da cama, no quarto de dormir, só depois os  vizinhos o transportaram para a sala. Os tipos do necrotério estavam apressados, seu trabalho aumentava com o carnaval. Enquanto os demais se divertiam, eles lidavam com defuntos, com as vítimas de desastres e de brigas. Arrancaram o lençol imundo a embrulhar o cadáver, entregaram o laudo à viúva.
     Vadinho ficou nu como Deus o pôs no mundo, em cima da cama de casal, uma cama de ferro com cabeceira e pés trabalhados, comprada em segunda mão por Dona Flor, num leilão de móveis, quando do casamento, seis anos antes. Dona Flor, sozinha no quarto, abriu o envelope, estudou o parecer dos médicos. Balançou a cabeça, incrédula. Quem diria? Aparentemente tão forte e são, tão moço ainda!
Gabava-se Vadinho de jamais ter estado doente e de ser capaz de atravessar oito dias e oito noites sem dormir, jogando e bebendo ou na farra com mulheres. E por vezes não passava realmente oito dias sem aparecer em casa, deixando Dona Flor em desespero, como maluca? No entanto, ali estava o laudo dos doutores da Faculdade: era um homem condenado, fígado imprestável, rins estrompados, coração aos pandarecos. Podia morrer a qualquer momento, como morrera. Assim, de repente. A cachaça, as noites nos cassinos, a esbórnia, a correria doida à cata de dinheiro para o jogo haviam arruinado aquele organismo belo e forte, deixando-lhe apenas a aparência. Sim, porque, olhando-o só pelo lado de fora, quem o julgaria tão implacavelmente liquidado? Dona Flor contemplou o corpo do marido, antes  de chamar os prestimosos e impacientes
Dona Flor contemplou o corpo do marido, antes  de chamar os prestimosos e impacientes vizinhos para a delicada tarefa de vesti-lo. Lá estava ele, nu como gostava de ficar na cama, uma penugem doirada a cobrir-lhe braços e pernas, mata  de pelos loiros no peito, a cicatriz da navalhada no ombro esquerdo. Tão belo e másculo, tão sábio no prazer! Mais uma vez as lágrimas assomaram aos olhos da jovem viúva. Tentou não pensar no que estava pensando, não era coisa para dia de velório.
[....]  4O corpo de Vadinho foi depositado no caixão, levado para a sala de visitas onde haviam improvisado um estrado com as cadeiras. Seu Vivaldo trouxera flores, contribuição gratuita da funerária. Dona Gisa arrumou uma saudade roxa entre os dedos cruzados de Vadinho. Seu Vivaldo considerou para si mesmo o absurdo do gesto: deviam colocar entre os dedos do morto uma ficha de jogo, isso sim. Uma ficha em vez da saudade roxa, e se em lugar da música e dos risos do carnaval se elevassem por ali perto o ruído das mesas da roleta, a voz rouquenha do crupiê, o soar das fichas, as nervosas exclamações  dos jogadores, era bem possível ver-se Vadinho levantar do caixão, sacudir dos ombros sua  morte, como sacudia, num gesto característico, as complicações a perseguirem-no e encaminhar-se para depositar sua ficha no 17, seu número predileto. Que poderia ele fazer com uma saudade roxa, logo estaria murcha e fanada, nenhuma roleta a aceitaria.
Seu Vivaldo não se demorou; carnavalesco obstinado, só abrira a funerária naquele domingo de festa para atender a um amigo como Vadinho. Fosse outro o defunto, e se arranjasse como pudesse, não iria ele, Vivaldo, perturbar seu arnaval.
[...]
Os importantes recordaram Vadinho entre risos, suas histórias cheias de picardia e de malícia, seus golpes divertidos, suas trampolinagens atrevidas, suas atrapalhações e confusões, e seu bom coração, sua gentileza, sua graça inconseqüente. Também os vizinhos assim o relembravam: boêmio sem horário e sem limites. Uns e outros ampliavam a realidade, inventavam detalhes, atribuíam-lhe casos e aventuras, a lenda de Vadinho começava a nascer ali junto de seu corpo, quase na hora mesmo de sua morte. O citado doutor Giovanni Guimarães imaginava pedaços inteiros de histórias, floreava os acontecidos, era chegado a uma mentirazinha bem apoiada em datas e locais precisos:
- Um dia, há quatro anos passados, no mês de março, encontrei Vadinho na casa de Três Duques, jogando no 17. Estava vestido com uma capa de borracha, por baixo não tinha roupa nenhuma, nuzinho. Botara tudo no prego, empenhara calça e paletó, camisa e cueca, para poder jogar. Ramiro, aquele espanhol canguinha do Setenta e Sete, só queria ceitar a calça e o paletó, que diabo iria fazer com uma camisa de colarinho puído, uma velha cueca, uma gravata vagabunda? Mas Vadinho lhe impingiu até o par de meias, guardou apenas os sapatos. E tinha tanto mel na língua que conseguiu que Ramiro, aquela fera que vocês conhecem, lhe emprestasse uma capa de borracha quase nova pois não ia sair nu, rua a fora, em direção à casa de Três Duques...
     - E ganhou? - queria saber o jovem Artur, filho de seu Sampaio e de Dona Norma, ginasiano e admirador de Vadinho, a ouvir boquiaberto o relato do jornalista.      Doutor Giovanni olhou o moço, fez uma pausa, sorriu com o rosto todo:
     - Qual o quê... Pela madrugada perdeu a capa do espanhol no 17 e foi trazido para casa embrulhado nas folhas de um jornal... – o sorriso transformava-se num riso sonoro, contagioso, ninguém igual a doutor Giovanni para animar uma sentinela.
E como naquele momento entrasse na sala o inumerável Robato, o jornalista acrescentou a prova final, as palavras ainda molhadas do riso:
     - Está aí quem não me deixa mentir... Você ainda se lembra, Robato, daquela noite em que Vadinho foi nu para casa, enrolado num jornal?
     Robato não era homem de vacilar: circundou o olhar em torno, examinando o grupo acomodado num canto da sala de jantar; temeroso de  ouvidos femininos e indiscretos, não fossem chegar à desolada viúva tais recordações; mas vacilar não vacilou, não era de recusar desafios, tinha o repente fácil, pegou a deixa no ar:
     - Nu, enrolado num jornal? Ora, se me recordo... - pigarreou para aclarar a voz barroca e desatar a imaginação - Pois se a gazeta era minha... Foi no castelo de Eunice Um Dente Só; além de nós dois e de Vadinho, me lembro de Carlinhos Mascarenhas, de Jenner e de Viriato Tanajura... A gente tinha bebido a noite inteira, um pifa sem medida...
[...]
Sucediam-se as histórias enquanto Dona Norma, Dona Gisa, a casadoira Regina, outras moças e senhoras, serviam cafezinho com bolos, cálices de cachaça e de licor de frutas. A vizinhança providenciara para que nada faltasse ao Velório.
Os importantes, sentados na sala de jantar, no  corredor, na porta da rua, relembravam
Vadinho entre anedotas e risos. Os outros, os parceiros de jogo e de malandragem, recordavam-no em silêncio, sérios e comovidos, demoravam na sala de visitas, de pé, ao lado do corpo. Ao entrar, paravam ante Dona Flor, apertavam-lhe a mão, encabulados, como se fossem responsáveis pelos maus feitos de Vadinho. Muitos deles não a conheciam sequer, nunca a tinham visto, mas de tanto ouvirem falar nela, sabiam como por vezes Vadinho  tomava-lhe até o dinheiro das despesas para jogá-lo no Pálace, no Tabaris, no Abaixadinho, no antro de Zezé Meningite, no de Abílio Moqueca, nas múltiplas roletas ilegais da cidade, inclusive na mal afamada casa de tavolagem do negro Paranaguá Ventura, onde por princípio só o banqueiro devia ganhar.
[...]
  Vieram também às alunas de Dona Flor, quase todas. Alunas e ex-alunas, unânimes no desejo de consolar a estimada e competente professora, tão boazinha, coitada! De três em três meses, sucediam-se às turmas nos cursos de culinária geral (pela manhã) e de culinária baiana (pela tarde), formavam-se em forno e fogão. Com diploma impresso e quadro de formatura exposto em loja da Avenida Sete, desde uma turma antiga, à qual pertencera Dona Oscar linda, enfermeira de categoria, funcionária do Hospital Português, esbelta e esporreteada, doida por um enredo. Exigira diploma e quadro, movimentara as colegas, fizera uma agitação dos demônios, recolhera contribuições, arranjara desenhista de graça, pintara o sete, a enxerida.
[...]
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  No outro dia, as dez da manhã, saiu o enterro, com grande acompanhamento. Não havia bloco  nem rancho naquela manhã de segunda-feira de carnaval capaz de comparar-se em importância e animação com o funeral de Vadinho. Nem de longe.
    - Espie... pelo menos espie pela janela... - disse Dona Norma a Zé Sampaio, desistindo de arrastá-lo ao cemitério -... espie e veja o que é o enterro de um homem que sabia cultivar suas relações, não era um bicho do mato como você... Era um capadócio, um jogador, um viciado, sem eira nem beira, e, entretanto, veja... Quanta gente e quanta gente boa... E isso num dia de carnaval... Você, seu Sampaio, quando morrer não vai ter nem quem segure a alça do caixão...
Zé Sampaio não respondeu nem olhou pela janela. Metido num pijama velho, na cama, com os jornais da véspera, apenas gemeu um fraco gemido e meteu o dedo grande na boca. Era um doente imaginário, tinha um medo desatinado da morte, horror de visitas a hospitais, de sentinelas e enterros, e naquele momento encontrava-se à beira do enfarte. Assim vinha desde a véspera, desde que a esposa lhe informara ter o coração de Vadinho estourado de repente. Passara uma noite de cão a esperar a explosão das coronárias, rolando na cama em suores frios, a mão comprimindo o peito esquerdo.
    Dona Norma, colocando sobre a cabeça de formosos cabelos castanhos um xale negro, apropriado para a ocasião, completou, impiedosa:
    - Eu, se não tiver pelo menos quinhentas pessoas em meu enterro, vou me considerar uma fracassada na vida. De quinhentas para cima...
     Partindo desse princípio, Vadinho devia considerar-se plenamente vitorioso e realizado. Pois meia Bahia viera a seu funeral e até o negro Paranaguá Ventura abandonara seu soturno covil e ali estava, o terno branco brilhando de espermacete, gravata negra e negro laço na manga esquerda, rosas vermelhas na mão. Preparava-se para segurar uma alça do caixão e, ao dar os pêsames a Dona Flor, resumiu o pensar de todos na mais breve e bela oração fúnebre de Vadinho:
     - Era um porreta!
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Da outra cena - de GABRIELA, CRAVO E CANELA - temos um vídeo:
 A cena é a da declaração de greve das meninas do Bataclan

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